Por ocasião de todo período eleitoral, alguns temas vêm à tona e são alvos de debates entre os candidatos e diante dos diversos veículos de comunicação. Entre esses temas, de interesse da sociedade, destaca-se a questão da violência e da segurança pública.
Em recente pesquisa do Datafolha a segurança pública, a violência e a polícia estão entre as maiores preocupações dos brasileiros, com 17%, perdendo apenas para preocupação com a saúde com 23%.
Segundo o Atlas da Violência 2023, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e de acordo com o Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS), em 2021 houve 47.847 homicídios no Brasil, o que corresponde a uma taxa de 22,4 mortes por 100 mil habitantes.
É certo que os mais vulneráveis são os que mais padecem com a omissão do Estado no que diz respeito à adoção de políticas públicas e sociais inclusivas. De igual modo, não há como negar que a população mais carente e marginalizada é, também, a mais atingida pela criminalização – primária e secundária – e pela violência estatal.
Os dados trazidos pelo Atlas da Violência revelam que tanto para homens quanto para mulheres, os negros (pretos e pardos) são as principais vítimas dos homicídios: 76% entre os homens e 66% entre as mulheres.
A seletividade do sistema penal fica evidenciada nos dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, segundo o qual 6.429 pessoas morreram pelas mãos de agentes públicos no ano de 2022 – uma média de 17,6 por dia. O Anuário aponta que a maioria das vítimas é do sexo masculino (99%), negra (83%) e jovem (45% tem de 18 a 24 anos).
Os problemas e dilemas da segurança pública brasileira, notadamente nas grandes cidades, são reflexos de um legado político autoritário. Para o professor Robson Sávio Reis Souza - especialista em Estudos da Criminalidade e Segurança Pública - “as bases do sistema público de segurança (ainda) estão assentadas numa estrutura social historicamente conivente com a violência privada, a desigualdade social, econômica e jurídica e os ‘déficits de cidadania’ de grande parte da população”.
Desgraçadamente, quando o Estado faz a opção pelo uso da força, os vulneráveis (pobres, negros e favelados) – os mesmos que integram a grande maioria da população carcerária – são os principais alvos da repressão para atender os desejos, conscientes e inconscientes, dos endinheirados e de uma classe média conservadora, preconceituosa e moralista.
Diante dessa situação é imperioso que se reduza drasticamente a desigualdade social e os déficits de cidadania.
A questão carcerária e do encarceramento em massa é outro grande problema que precisa ser enfrentado sem demagogia e sem medo de desagradar aqueles que insistem no discurso oco da impunidade. A população carcerária com mais de 800 mil presos, segundo último levantamento – terceira maior do planeta – aumentou 257% desde 2000. A maior parte dos presos é negra (68,2%) e tem de 18 a 29 anos (43,1%), segundo os dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Não obstante, hodiernamente, tem sido comum recorrer ao “discurso contra a impunidade” para fomentar a necessidade de incrementar o Estado penal em detrimento do Estado social. O discurso da impunidade, no dizer de Ricardo Genelhú “tem servido de motivo para uma suposta restauração da “segurança social” quando na verdade, serve ela mesma, per se, é de desculpa para a perseguição ao “outro” (...)”.
Não se pode negar que o discurso midiático - criminologia midiática - da impunidade, contribui sobremaneira para o avanço do Estado autoritário e para a cólera do punitivismo.
Atingidos pela criminologia midiática e pelo discurso da impunidade, políticos tendem a apresentar projetos de leis com viés autoritário, conservador e reacionário. Já os juízes, tendem agir de igual modo quando usam e abusam das medidas repressoras e de exceção, como a prisão preventiva, transformando a medida excepcional em regra e em antecipação da tutela penal, ou quando fixam penas privativas de liberdade bem acima do razoável em nome de uma prevenção geral positiva e/ou negativa e do apelo à prevenção especial negativa – neutralização e incapacitação do infrator - em prejuízo dos princípios garantistas, notadamente, o da culpabilidade.
Não, definitivamente a segurança pública não pode ser tratada e enfrentada apenas e tão somente como questão de polícia. A questão da segurança pública vai muito além da repressão e da “política penal”.
Leis draconianas, fruto da sanha punitivista, que extinguem direitos e garantias fundamentais, que criminalizam o agente (direito penal do autor) e que elevam penas a patamares estratosféricos – como se o direito penal fosse a panaceia de todos os males da sociedade - em nada, absolutamente em nada, contribuem para o enfrentamento da violência.
Numa sociedade de classes, destaca Nilo Batista, “a política criminal não pode reduzir-se a uma ‘política penal’, limitada ao âmbito da função punitiva do estado, nem a uma ‘política de substitutivos penais’, vagamente reformista e humanitária, mas deve estruturar-se como política de transformação social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia e de modos de vida comunitária e civil mais humanos”.
Por tudo, apesar das últimas propostas apresentadas e aprovadas pelo Congresso Nacional, roga-se aos representantes do povo brasileiro - em nome do Estado Constitucional e da Democracia – que passem a enfrentar a questão da violência e da segurança pública sem hipocrisia e, sobretudo, como uma questão social e de políticas públicas.
Belo Horizonte, 14 de março de 2024
Leonardo Isaac Yarochewsky
Membro efetivo do IAB
Advogado Criminalista
Doutor em Ciências Penais pela UFMG
Artigo publicado no site Migalhas