Será que há espaço para um poema de estilo particularmente elevado e solene, descrevendo intelectual e emocionalmente o ofício da advocacia? O êxtase e a glória da profissão? O que dirão os admiradores das utopias digitais? A tecnologia salvará mesmo o mundo? A transformação digital é um caminho sem volta. Como entrar no modo reinvenção para buscar oportunidades em meio a esses desafios? Como será o futuro da advocacia, com esse mergulho na dimensão digital? Ainda há espaço para a vida, a arte e a criação na advocacia?
Subimos mesmo num pódio instável. A pandemia acelerou o futuro e tornou inevitável o uso da tecnologia. É certo, porém, que acabamos despidos de uma camada relevante de nossa humanidade. Como usar, então, a tecnologia e não ser usado por ela? Como preservar a qualidade e a forma de recepção mais próxima à realidade que se tem na impressão pessoal, garantindo voz, qualidade, tom, impressões, direitos dos advogados na plenitude da garantia da defesa? O romantismo da profissão restou afetado?
O homem se exibe numa figura discreta, mas o advogado é onipresente e público. Se os juízes não podem receber presencialmente e não estão mais em seus gabinetes, preferindo a videoconferência ou o telefone, a única esperança que resta é que o magistrado venha a ler a peça processual com “ciência e consciência de que não se julgam papéis, mas destinos”, como dizia o ministro aposentado do STF Marco Aurélio Mello.
Como se situa, então, o advogado nesse “admirável mundo novo”, no equilíbrio frágil entre o analógico e o digital, nessa era da retração da advocacia em oposição à era da expansão de um mundo ideal para os juízes, face o encanto pelo trabalho remoto? São tantas as mudanças que ficamos tontos e perplexos: inteligência artificial (IA), sistema Victor do STF; sistemas Athos e Sócrates do STJ; plenário virtual em ambiente eletrônico.
A advocacia virou um centro de experimentos que pode inspirar ou mesmo desaconselhar iniciativas afins em outras profissões. O advogado tem necessitado de uma curadoria de conteúdo ou até mesmo de uma mentoria para avançar? Claro que toda experiência nova traz dificuldades, mas como sairemos de tudo isso? O que restará desse tempo tão acelerado em que advogados apressadamente respondem a consultas pelo celular no elevador e analisam contratos, celular em punho, caminhando normalmente pela rua. Onde ficou a concentração, o silêncio, a reflexão e o tempo indispensável para cada coisa?
Evidente que não sou o oráculo de Delfos para dizer o que acontecerá. O chão sagrado e murado dos escritórios foi devastado e hoje se confunde com a nossa casa. Vivemos um tempo difícil. Advogados sem voz, sem rosto, autômatos, sem pessoalidade. Julgamento de processos em lista nas sessões presenciais e virtuais; arquivos de áudio com sustentação oral via e-mail; memoriais por e-mail; atendimento telepresencial. Quadro excepcional e emergencial, estendido por alguns em situações de normalidade, em oposição a um futuro próximo desconhecido nessa longa permanência do instável.
É verdade que os artigos 193 a 199 do Código de Processo Civil (CPC) preveem a prática eletrônica de atos processuais. Será que sou um menestrel medieval, assombrado com tudo isso, ainda que existam uns poucos iguais a mim? Em nome de toda essa modernidade, os direitos da cidadania, de que fazem uso os advogados como prerrogativas legais, têm sido mal cuidados e malferidos.
Alguns exemplos repetidos podem ser compartilhados à reflexão para ilustrar esse quadro: a faculdade que tem o advogado de sustentar seu recurso por videoconferência, como consta expressamente do art. 937, § 4° do CPC. A lei é clara: “É permitido ao advogado com domicílio profissional em cidade diversa daquela onde está sediado o tribunal realizar sustentação oral por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que o requeira até o dia anterior ao da sessão”. Alguns juízes e tribunais, no entanto, passada a situação excepcional da pandemia, parecem entender que essa faculdade dos advogados é um direito deles, julgadores, e uma opção permitida aos tribunais, o que, data vênia, é um requintado absurdo. Não sem razão, alguns tribunais continuam até hoje operando julgamentos apenas por videoconferência, não obstante a determinação em sentido contrário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Além disso, por mais atraente que seja o encanto pelo julgamento virtual em ambiente eletrônico, o Judiciário, como um dos Poderes da República, independente e harmônico, deve exercer esse poder presencialmente, sob pena de a comodidade estimular o declínio e até a usurpação de competências de um Poder por outro, não sem graves riscos à democracia. É que o poder se exerce mesmo física e presencialmente, e não remotamente, sendo o vácuo sempre muito perigoso.
Outra questão bastante delicada no dia a dia da advocacia tem sido os julgamentos virtuais em ambiente eletrônico, que se tornaram a prática recorrente de todos os tribunais. O CPC previa essa forma de julgamento no artigo 945, que acabou expressamente revogado pela Lei 13.256, de 4 de fevereiro de 2016. O dispositivo revogado previa o seguinte: “A critério do órgão julgador, o julgamento dos recursos e dos processos de competência originária que não admitem sustentação oral poderá realizar-se por meio eletrônico. § 1o – O relator cientificará as partes, pelo Diário da Justiça, de que o julgamento se fará por meio eletrônico. § 2o – Qualquer das partes poderá, no prazo de 5 (cinco) dias, apresentar memoriais ou discordância do julgamento por meio eletrônico. § 3o – A discordância não necessita de motivação, sendo apta a determinar o julgamento em sessão presencial. § 4o – Caso surja alguma divergência entre os integrantes do órgão julgador durante o julgamento eletrônico, este ficará imediatamente suspenso, devendo a causa ser apreciada em sessão presencial”. Parece não haver fundamento legal para julgamento virtual em ambiente eletrônico baseado apenas em previsão regimental sem lei que o autorize (art. 22, I, CF), nada obstante, lamentavelmente, tenha se tornado usual, com imenso sacrifício ao direito das partes e à ampla defesa e o contraditório exercido pelos advogados. Parece que os 15 minutos de sustentação oral, garantidos aos advogados no art. 937 do CPC, é mesmo uma eternidade para os julgadores.
Tudo isso denota um aparente e claro desprestígio ao papel do advogado, não obstante o disposto no art. 133 da Constituição Federal, porque, além de negar sua indispensabilidade, consagra prejuízo às partes, quando seus advogados ficam privados de intervir e/ou esclarecer questões de fato e/ou arguir questões de ordem, além de não poderem participar presencialmente dos julgamentos, o que malfere ainda o princípio da publicidade disposto no art. 93, inciso IX da CF. O art. 945 do CPC consagrava apenas a discordância sem necessidade de motivação como meio de manutenção do julgamento em sessão presencial. Alguns tribunais, contudo, sem essa referência legal, tratam diferentemente a questão, não facultando ao advogado nem mesmo apresentar objeção ao julgamento virtual por meio eletrônico, como o STJ e o STF, para os quais somente eventual destaque dos ministros, depois de iniciado o julgamento, pode retirar os processos da pauta virtual em ambiente eletrônico para a pauta presencial.
Existem ainda situações bastante preocupantes de julgamentos virtuais em ambiente eletrônico compulsório em instância única. Além disso, a objeção manifestada ao julgamento em sessão virtual por meio eletrônico não se vincula à existência ou não de sustentação oral, constituindo, faculdade em benefício das partes por seus advogados, desde que observado o prazo regimental previsto – outra limitação – quando o dispositivo legal revogado do CPC referia apenas a discordância, sem necessidade de motivação como meio de manutenção do julgamento em sessão presencial. E, por fim, ainda que o recurso não tenha previsão legal de sustentação oral (art. 937 CPC), é fato que no julgamento presencial o advogado pode prestar esclarecimentos acerca de eventuais questões de fato e de ordem, o que lhe é vedado na sessão virtual por meio eletrônico, prescindindo o órgão julgador de aspectos que se revelam componentes essenciais do devido processo legal e do acesso à justiça, consagrados no artigo 5°, incisos XXXV, LIV e LV da CF.
O avanço sobre o direito dos advogados é tão preocupante que o Tribunal de Justiça de São Paulo, contrariando o CPC e fazendo uso de dispositivo regimental, entendeu recentemente que os advogados podem sair intimados da sessão de julgamento quando o acórdão for disponibilizado até o fim daquele mesmo dia, como aconteceu em sua 10a Câmara de Direito Público. Essa tempestade perfeita ocorre exatamente quando os prédios dos tribunais estão abandonados e vazios, com poucas partes, advogados, juízes, promotores e defensores neles circulando, e quando há clara necessidade de redimensionamento de espaços internos de varas, secretarias, gabinetes; quando foi revelado que o gasto público com tribunais do Judiciário, incluindo salários de magistrados e servidores consomem o equivalente a 1,6% do PIB, a maior parcela entre 53 países analisados pelo Tesouro Nacional, de acordo com estudo técnico do órgão, quando a média de diferentes economias analisadas é de 0,4% do PIB.
Todo esse enredo incrível e assustador tem sido desenvolvido a conta-gotas, maltratando e machucando bastante a profissão, mas, como é preciso saber viver, se faz indispensável mirar as coisas com olhos frescos, mantendo o gosto dos caminhos recomeçados, com suas mudanças, beleza e a certeza que o pulso da advocacia é pujante e, não obstante todo esse quadro adverso, ele ainda pulsa.
Fonte: Justiça & Cidadania
https://www.editorajc.com.br/ainda-ha-lugar-para-uma-ode-a-advocacia/