O sistema tributário da Constituição de 1988 é complexo em relação à de repartição (e de competências) de receitas tributárias e tende a ser concentrado na União. Veja-se o caso das contribuições especiais cujas hipóteses de incidência, muitas vezes, são similares aos dos impostos (e.g. CSLL vis-à-vis o IRPJ) que são repartidas com estados e municípios. A União aumentou a sua arrecadação tributária e, paulatinamente, diminuiu as alíquotas dos tributos repartidos. Em outras palavras, a União passou a aumentar sua capacidade arrecadatória em detrimento dos entes subnacionais.
O sistema extremamente complexo demonstrou-se disfuncional, merecendo crítica por parte de todos os seus “usuários”. Não faltaram propostas de reforma tributária enviadas para o Congresso, debates acadêmicos e seminários empresariais discutindo o assunto, cuja importância é evidente. Finalmente, em 2023 o governo federal conseguiu aprovar a “mais importante” das reformas.
Como em toda mudança substancial, haverá vencedores e perdedores. É do jogo. Mas neste jogo o meio ambiente parece ter perdido um grande aliado: o ICMS ecológico. Diferentemente do que o nome dá a entender, o ICMS ecológico não é um imposto, mas sim um instituto financeiro (repartição de receita tributária) previsto no, artigo 158 da CRFB [1].
O ICMS ecológico surgiu do aperfeiçoamento da sistemática do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em 1988, que decorre da evolução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) de 1965, que, por sua vez, advém de transformações na sistemática do Imposto sobre Vendas Consignadas (IVC) de 1946 [2]. Sucessivas mudanças incrementais entre 1946 e 2020 resultaram em diversas alterações sistemáticas destes impostos, como por exemplo hipóteses de incidência; regime acumulativo; o adicional municipal ao ICM; a repartição do produto da arrecadação de 20% do ICM por valor adicionado fiscal; e a repartição de 25% do produto da arrecadação do ICMS por valor adicionado fiscal e critérios estaduais.
Como se vê, esta característica de repartição do ICMS, advinda da evolução incremental ano após ano do IVC ao ICM e do ICM ao ICMS, possibilita a configuração de inúmeras hipóteses de distribuição da quota parte pertencentes aos Municípios. Historicamente, os critérios distributivos se referiam à área do município, número de habitantes, quota parte igualitária etc. O critério ambiental, difundido pelo nome ICMS verde ou ICMS ecológico, é apenas um dos critérios que os Estados podem instituir, observadas as restrições constitucionais.
O ICMS ecológico surgiu no Paraná em 1990: previsão de um critério — no caso o ambiental — de repartição da quota parte que os municípios fazem jus do produto da arrecadação de ICMS do Estado (artigo 158, § único, I e II, CRFB). À época, a redação constitucional previa que 25% do ICMS arrecadado pelo Estado seria distribuído aos municípios da seguinte maneira: ¾ pelo critério do valor adicionado fiscal; e até ¼ por critério estabelecido por legislação estadual. Em 2020, a Emenda Constitucional nº 108 alterou o dispositivo constitucional para determinar a distribuição a seguir: 65% pelo critério do valor adicionado fiscal; e até 35% por critério estabelecido por legislação estadual, sendo 10% com base em indicadores de melhoria de educação.
O ICMS ecológico não resolveu (e nem resolveria) os problemas ambientais enfrentados no país, mais evidentes com as enchentes e ondas de calor vistas em diversas partes do Brasil em 2023. Sendo um critério que induz à competição municipal por parte dos 35% que os municípios fazem jus do ¼ do ICMS arrecadado pelos estados, o ICMS ecológico possui relação de dependência com atividade econômica, normalmente poluidora, e não teria como garantir recursos suficientes para que os Municípios solucionassem os problemas enfrentados nas agendas verde (áreas protegidas), azul (recursos hídricos) e marrom (resíduos sólidos).
Ademais, a mesma flexibilidade legislativa que permite inúmeras configurações do ICMS ecológico de acordo com as realidades estaduais (como por exemplo ênfase em áreas protegidas, terras indígenas, combate ao desmatamento etc.) também permite a criação de normas que confrontam a autonomia financeira e administrativa dos municípios (tais como obrigatoriedade de criação de secretaria e/ou fundo e/ou guarda municipal ambiental, além de vinculação da receita de imposto a determinado órgão ou fundo).
A despeito de ser apenas um critério dentre os diversos critérios de repartição do produto da arrecadação do ICMS, o ICMS ecológico tem como trunfo a indução à competição por parte dos gestores municipais. Em outras palavras, diferentemente dos critérios de área e quota parte igualitária, que são estáticos por definição, o ICMS ecológico permite que o gestor municipal seja premiado por sua ação — no caso promover a conservação ambiental.
Apesar das limitações constitucionais (e.g. alto percentual de distribuição pelo critério de valor adicionado fiscal) e legais (e.g. falta de atualização dos subcritérios ambientais após determinado tempo), o ICMS Ecológico foi difundido em 16 estados da federação e foi reconhecido como uma política pública descentralizadora com impacto positivo no meio ambiente[3], em razão de suas funções incentivadora (competição municipal pelo percentual ambiental), redistributiva (federalismo fiscal) e compensatória (indisponibilidade territorial para atividades econômicas), mas também por sua adaptabilidade às situações fáticas estaduais, facilidade de implementação e pelo baixo custo de fiscalização.
Aparentemente, a reforma tributária acabará com esta política pública financeira-ambiental. A proposta que saiu vencedora no Congresso substitui o ICMS (e ISS) pelo Imposto de Bens e Serviços (IBS) e altera a sistemática de distribuição aos municípios do IBS seguindo mais ou menos as alterações promovidas pela EC 108/2020: 85% na proporção da população; 10% com base em indicadores educacionais; e 5% em quota parte igualitária (artigo 158 §2º, I, II e III da PEC 45/2019).
Além disso, a reforma tributária introduz normas principiológicas sobre o meio ambiente no sistema tributário nacional, como por exemplo a inclusão do §3º no artigo 145 (“O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária e do equilíbrio e da defesa do meio ambiente.”), assim como novo imposto que incidirá sobre “bens ou serviços prejudiciais … ao meio ambiente” (artigo 153, VIII da PEC 45/2019), e contribuição sobre bens e serviços (artigo 195, V da PEC 45/2019), ambos de competência da União. A alteração do artigo 155, §6º, II da CRFB para prever alíquota diferenciada em razão do impacto ambiental para o IPVA (artigo 155, §6º, II da PEC 45/2019) não alterará o panorama atual de alíquotas diferenciadas para veículos automotores à combustão de gasolina, álcool, flex, diesel e gás natural.
Pelo andar da carruagem, a PEC 45/2019 não sofrerá alterações substanciais que impactem a sistemática de distribuição do IBS. Parece que a trajetória de 30 anos do ICMS Ecológico terminou, não havendo espaço político para discussão de reintrodução deste importante mecanismo financeiro-ambiental. Aqui cabe uma crítica ao Congresso que não se preocupou com a manutenção de um instrumento que se mostrou exitoso e que prestou serviços à comunidade e ao meio ambiente. Rest in Peace.
[1] Ver DA MATTA, João Lopes de Farias. A Contribuição do ICMS Ecológico para a Conservação Ambiental Municipal no Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. p. 66-68.
[2] Para maiores informações sobre as mudanças constitucionais que alteraram a sistemática do ICMS ao longo do tempo e permitiram a criação do ICMS Ecológico, ver DA MATTA, op. cit., p. 68-74.
[3] Ver FUNDAÇÃO S.O.S. MATA ATLÂNTICA. ICMS Ecológico e as Unidades de Conservação Municipais da Mata Atlântica. 2019; RUGGIERO, Patrícia G. C., et al. The Brazilian intergovernmental fiscal transfer for conservation: A successful but self-limiting incentive program. Ecological Economics, Elsevier, vol. 191(c); DA MATTA, op. cit.
João Lopes de Farias da Matta
é mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Paulo de Bessa Antunes
é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros.