O julgamento do Recurso Extraordinário 1017365 pelo Pleno do STF gerou revolta dos “ruralistas”, nome que se dá a membros da chamada Frente Parlamentar da Agricultura. Decidiu a corte por considerar incompatível com o regime de posse indígena estabelecido no Art. 231 da Constituição, o chamado “marco temporal”, tese política que expressa pretensão de limitar a demarcação dos territórios dos povos indígenas àqueles que efetivamente ocupavam na data da promulgação do texto constitucional em 1988.
Sem querer entrar no mérito do julgado da corte máxima do país, não pode deixar de causar estranheza o comportamento de parlamentares ao buscarem confronto com o poder judiciário. A revolta chegou a ponto de o Senado aprovar, a toque de caixa, projeto de lei a estabelecer o tal marco temporal, na contramão do que foi deliberado, ainda no mesmo dia, pelo plenário do STF. Como sabem que a lei, acaso aprovada nas duas casas, será fulminada pela Corte à pecha da violação da Constituição, resolveram ainda, os senadores, com apoio também de colegas da Câmara dos Deputados, obstruir a pauta das duas casas, em greve branca contra seu dever de legislar.
A par de a greve ser um verdadeiro insulto ao eleitor, que incumbiu legisladores de dar sustentabilidade à governança do País, é inconstitucional acinte à cláusula pétrea de separação dos poderes. Não pode o poder legislativo tolher a jurisdição constitucional, por mais que suas decisões não agradem a parcela dos parlamentares. Os poderes são, por determinação constitucional, harmônicos entre si e isso implica o respeito às decisões tomadas em cada esfera do estado dentro dos limites consagrados na lei maior.
Mas a provocação parlamentar vai mais longe. Circula, entre eles, para coleta de assinaturas, proposta de Emenda Constitucional que permita às casas do Congresso derrubar decisões do STF por quórum de três quintos de seus membros. Outro desatino mais grave ainda, cumprindo lembrar aos mandatários a regra insculpida no Art. 60, § 4° da Constituição, que veda emendas constitucionais tendentes a abolir a separação de poderes, esta, portanto, erigida em cláusula pétrea só alterável pelo constituinte originário, nunca, porém, pelo derivado.
A tentativa de submeter decisões do STF ao crivo deliberativo do poder legislativo é abolição, mesmo que parcial, da separação de poderes entre Congresso e STF, nos limites concebidos pela Constituinte de 1987/1988, sobre os quais não cabe avançar.
Essa verdadeira agressão à jurisdição do STF, a atentar contra sua independência, é grave desserviço à democracia, revelando descompromisso de muitos parlamentares com o texto constitucional que legitima seu mandato. É pronta deslealdade à Constituição, que desabilita agentes públicos desempenharem suas funções no espaço político. São iniciativas como essa que inspiraram vândalos a atacarem em 8 de janeiro passado as sedes dos poderes da República. São gestos que inviabilizam o convívio democrático em nossa sociedade.
Cabe aos presidentes das duas casas do Congresso e às lideranças de bancadas atuarem de forma veemente para restaurar a civilidade entre parlamentares, sendo inconcebível que se tolere tamanho atentado às instituições. E não são discursos frágeis de negação do óbvio e do visível que restaurarão a normalidade institucional após essas agressões ao poder judiciário. As lideranças legislativas precisam se manifestar pública e insofismavelmente contra as tentativas de golpe contra o STF. Só assim serão os mandatários respeitados e será o princípio da autoridade homenageado. Fazer outra coisa comprometerá o Estado brasileiro e o levará à inevitável falência completa.
*Eugênio Aragão foi Ministro da Justiça e é sócio de Aragão e Tomaz Advogados Associados, em Brasilia