OPINIÃO

CONSÓCIOS

Quinta, 14 Setembro 2023 15:13

A tragédia das enchentes no RS, a efetividade de planos e suas siglas e os inquéritos civis

Em meio à tragédia das comunidades do Vale do Taquari e do Caí/Região Serrana do Rio Grande do Sul, entre 2 e 6 de setembro de 2023, ainda sem a dimensão exata da grandeza, (número de vítimas e desaparecidos e dos exatos danos materiais ), foi instaurado, pelo Ministério Público Federal, o Inquérito Civil PRM-CAX-RS-00008446/2023, com o objetivo de “apurar as providências adotadas em relação às enchentes”. 

De acordo com a Portaria 1, de 07/09/23, da Procuradoria da República no Município de Caxias do Sul, não houve a indicação de “um plano de evacuação das áreas e de emissão de alertas que possa efetivamente evitar danos à vida e incolumidade física dos cidadãos, sobretudo daqueles mais vulneráveis”, sendo que “três usinas hidrelétricas nos municípios da Serra Gaúcha, no curso hidrológico do Rio das Antas” teriam relação causal com o “agravamento do quadro”, nos termos do que dispõe a Lei 12.334/2010, que instituiu a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) e criou o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB). 

Foi oficiado aos prefeitos das comunidades das microrregiões de Bento Gonçalves, Caxias do Sul e Lajeado, aos representantes da Defesa Civil dos municípios e à Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura do Estado do Rio Grande do Sul, para que enviassem “informações e evidências que possam contribuir para a apuração dos fatos”, em 20 dias.  

A busca imediata por informações e pela responsabilização por irregularidades no enfrentamento de situações climáticas extremas fez lembrar, guardadas as proporções, o episódio de vazamento de óleo nas praias do Nordeste, ocorrido a partir de agosto de 2019 , quando, em meio ao trabalho incansável do Ministério do Meio Ambiente e Ibama, inclusive com ajuda de voluntários, o MMA, o Ibama, a Marinha, a Defesa Civil entre outros órgãos foram instados a prestar informações imediatas e a enviar relatórios periódicos à 4ª Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural - 4CCR do Ministério Público Federal - MPF/PGR  sobre o incidente e as medidas preventivas adotadas. Fato que originou algumas ações civis públicas em face da União pela “ausência de medidas urgentes para a limpeza das praias da zona costeira dos estados atingidos e contenção dos danos ambientais”. No âmbito da Ação Civil Pública nº 023-2019 (0805579-61.2019.4.05.8500 ), ajuizada em face da União e do Ibama, foi alegada, ainda, ausência de “informações concretas em resposta aos expedientes que lhes foram enviados e nas reuniões”, onde MMA e Ibama “jamais mencionaram a existências dos PPAV”, sigla para denominar os Planos Estratégicos de Proteção de Áreas Vulneráveis, propostos pelo MPF e aprovados pelo Ibama, contendo medidas emergenciais protetivas, como barreiras de proteção a serem erguidas em 24 horas. Essas medidas emergenciais, segundo o Inquérito Civil nº 1.35.000.001274/2019-63 , constariam do Mapeamento Ambiental para Resposta à Emergência no Mar - MAREM, com base no disposto no Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional - PNC (Decreto nº 8.172/2013 que regulamenta a Lei nº 9.966/2000). 

Muitos planos e siglas, talvez sem efetividade. 
As forças tarefas criadas no âmbito do Ibama tiveram que dedicar muitas horas do seu tempo para providenciar respostas aos relatórios determinados. 

Embora reconhecidos “os esforços e a dedicação de um sem número de servidores públicos e agentes contratados” entenderam os procuradores da república que as medidas eram “absolutamente insuficientes porquanto limitadas aos recursos financeiros que a União se predispõe a disponibilizar”. Assim, houve o pedido de responsabilização da União pelo dano ambiental ocorrido, diante da inércia do governo federal para prevenção de desastres dessa natureza, ainda que, posteriormente, as conclusões da Polícia Federal tenham sido no sentido de que um navio petroleiro grego foi o responsável pelo derramamento da substância no mar.

Voltando ao trágico episódio no Rio Grande do Sul que, além de danos ambientais e materiais, ceifou dezenas de vidas e deixou tantas desaparecidas, na portaria que instaurou o Inquérito PRM-CAX-RS-00008446/2023 há a referência à uma sigla tão importante quanto ainda inaplicável: ZEE RS, o programa de Zoneamento Ecológico Econômico do Estado do Rio Grande do Sul. Tal zoneamento, segundo a Procuradoria da República no Município de Caxias do Sul, deveria estar concluído a fim de que pudesse “mitigar os danos às populações atingidas, bem como o protocolo a ser seguido em casos tais, sobretudo no que se refere à comunicação da ocorrência a pequenos municípios, como o caso de Muçum e Roca Sales”. O ZEE, que pode ser costeiro (o qual, se efetivamente implantado, teria ajudado na prevenção do derramamento de óleo do NE?) ou não, instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente - PNMA, ainda carece de efetividade, principalmente em nível federal , embora esteja previsto no inciso II do artigo 9º da Lei nº 6.938/1981 e regulamentado pelo Decreto nº 4.297/2002 . 

No caso do ZEE RS, instrumento de auxílio ao planejamento e ordenamento territorial do qual requeridas informações, consta do site da Sema que foi configurado como ferramenta digital . 

Em comum aos inquéritos civis a determinação de respostas imediatas a danos ainda não quantificados e em fase de tentativa de reparação. No caso do RS, envolvendo não só a proteção ambiental, mas a sobrevivência de vidas humanas, com a reconstrução de 93 cidades, com mais de com mais de 340 mil moradores afetados, segundo a Defesa Civil do Estado do RS .

A apuração de responsabilização por eventuais danos e a determinação de medidas protetivas ambientais e da sociedade, bem como para compelir os responsáveis a mostrarem a capacidade de resposta à incidentes como esses é de competência do MP, segundo o artigo 129, inciso III, da CF/1988, o artigo 6º, VII, da Lei Complementar nº 75/93, e dos artigos 1º e seguintes da Lei nº 7.347/1985.

Todavia, as respostas ao incidente e às medidas preventivas devem ser apuradas em momento oportuno, considerando que, no caso do RS, foi decorrência de fenômeno meteorológico extremo, o ciclone extratropical e as fortes chuvas . 
Registre-se que, embora necessitemos dar efetividade ao "princípio da prevenção" consagrado na PNMA (artigo 2º, incisos I, IV e IX) e sejamos signatários de protocolos das convenções-quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas - UNFCCC, a nossa Política Nacional sobre Mudança do Clima - PNMC (Lei nº 12.187/09) ainda precisa de mais diretrizes por parte da União e dos órgãos ambientais do Sisnama para ser implantada. Temos meritórias iniciativas de órgãos ambientais estaduais para criar normativos, nos marcos legais e regulatórios sobre o licenciamento ambiental, com a exigência de diagnóstico climático no Estudo de Impacto Ambiental - EIA para empreendimentos e atividades com potencial de grande impacto ambiental, por recomendação do Ministério Público, com base em termo de referência desse diagnóstico, elaborado pela Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público Ambiental -Abrampa no âmbito do projeto “Política de Mudanças Climáticas em Ação”. 

Mas, essas providências, em decorrência de recomendações - e não de determinações no bojo de inquéritos civis, seriam tomadas com prazo suficiente para que os agentes públicos e econômicos, bem como a sociedade em geral, inserida nos ecossistemas atingidos, se adaptassem, naturalmente, às mudanças climáticas. 

No caso dos municípios gaúchos atingidos pelas cheias dos rios, em decorrência de alta precipitação pluviométrica, tais providências ou mesmo informações não deveriam se sobrepor ao trabalho de reconstrução envidado. Pretender que os gestores municipais, sem condições financeiras e sem contingente de pessoal suficiente para reconstrução das cidades, abram mão das suas responsabilidades para responder, em 20 dias, a relatórios é totalmente incabível. Assim como a determinação aos representantes da defesa civil dos municípios atingidos, para que enviem informações com cópias “de todas as comunicações recebidas [...] da Companhia Energética Rio das Antas (CERAN), no período compreendido entre os dias 31 de agosto e 6 de setembro de 2023, no tocante ao aumento do nível das águas do Rio das Antas, em decorrência das recentes chuvas, com a comprovação da data do envio e recepção das informações”.  

No caso da Sema, questiona-se, também, no momento de reconstrução atual, a determinação sobre a conclusão do referido ZEE, ou envio de informações se “algum dos municípios atingidos criou, instituiu e cadastrou, nos termos do Of. Gab/SEMA n. 0374/2023, uma comissão sobre mudanças climáticas, a fim de atuar como ponto focal junto ao Estado do Rio Grande do Sul, em nível municipal”.

Se nem em nível federal tornamos efetivos os princípios consagrados na PNMC (como referido, temos alguns OEMAs empenhando-se em criar normativos que estimulem o diagnóstico climático) como pretender que, no âmbito dos OMUMAs, cuja competência administrativa e normativa ambiental é relativamente recente, tais procedimentos já tenham sido adotados? 

É notório que o poder público, no Brasil, não está preparado adequadamente para atuar em emergências. Muito menos os municípios, cuja estrutura, na maior parte dos casos, é carente de recursos humanos, financeiros e técnicos.
Mas a prevenção não deve ser cobrada quando se ainda busca reparar o dano.

Inquéritos civis não podem estar dissociados da realidade. É fácil buscar respostas, criar programas e siglas, mas difícil mesmo é ser gestor e atuar em momentos de tragédias, sejam elas decorrentes de desastres naturais ou da ação humana. Todavia, sempre é tempo de ir à campo, mostrar solidariedade e arregaçar as mangas para ajudar na reconstrução de uma sociedade melhor, fundamento da nossa Constituição.
 

Advogada e consultora jurídica, é professora convidada em três cursos de pós graduação - MBAs sobre energia (FGV Energia e Universidade Católica de Petrópolis - UCP), com a disciplina Licenciamento Ambiental para o SEB e o Setor de Energia, é membro da Comissão de Energia, Infraestrutura e Saneamento da OAB RS e da Comissão de Energia e Transição Energética do IAB. Autora de diversos artigos em revistas e sites especializados e coautora de 12 livros sobre energia e meio ambiente. Participa de entidades representativas dos setores ambiental e de energia. Foi assessora jurídica no TRF4 e Assessora da Presidência do Ibama. 

 

[1] Decretado Estado de Calamidade Pública nos Municípios afetados pelos eventos climáticos de chuvas intensas (Decreto n. 57.177, de 06/09/23, publicado no DOE/RS de 6/9/23)
[2] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO MUNICÍPIO DE CAXIAS DO SUL-RS. PRM-CAX-RS-00008446/2023. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/rs/municipios/procuradoria-da-republica-no-municipio-de-caxias-do-sul. Acesso: 10 set. 2023
[3] Chega a 695 número de localidades afetadas por óleo no Nordeste e ES - Época Negócios | Brasil (globo.com). Acesso: 10 set. 2023
[4] Sobre a competência da 4CCR, vide: 4ª Câmara - Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (mpf.mp.br). Acesso: 10 set. 2023
[5] Processo Judicial Eletrônico: (jfse.jus.br). Acesso: 10 set.2023
[6] https://www.mpf.mp.br/se/sala-de-imprensa/docs/ACP0232019IC1.35.000.001274201963DesastreAmbientalPlanoNacionaldeContingencia1.pdf. Acesso: 10 set. 2023
[7] Óleo que atingiu praias do Nordeste veio de petroleiro grego, diz PF | Agência Brasil (ebc.com.br). Acesso: 10 set. 2023
[8] Segundo o site do MMA, “Em conformidade com o pacto federativo e com o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), o zoneamento ecológico-econômico (ZEE) é executado de forma compartilhada entre a União, os estados e os municípios. De fato, de acordo com a lei complementar nº 140/2011, que fixa normas para a cooperação entre os entes da federação no exercício da competência comum relativa ao meio ambiente, prevista no artigo 23 da Constituição Federal de 1988, constitui ação administrativa da União a elaboração do ZEE de âmbito nacional e regional, cabendo aos estados elaborar o ZEE de âmbito estadual, em conformidade com os zoneamentos de âmbito nacional e regional, e aos municípios a elaboração do plano diretor, observando os ZEEs existentes”.
[9] Art. 2º O ZEE, instrumento de organização do território a ser obrigatoriamente seguido na implantação de planos, obras e atividades públicas e privadas, estabelece medidas e padrões de proteção ambiental destinados a assegurar a qualidade ambiental, dos recursos hídricos e do solo e a conservação da biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável e a melhoria das condições de vida da população
[10] Rio Grande do Sul ganha cartografia digital de zoneamento ecológico-econômico - Sema - Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura. Acesso: 10 set. 2023
[11] https://defesacivil.rs.gov.br/ Acesso: 10 set. 2023
[12] : https://metsul.com/desastre-gaucho-coincide-com-chuva-extrema-no-clima-ao-redor-do-mundo/. Acesso: 10 set. 2023
[13] Início - ABRAMPA. Acesso: 10 set. 2023
[14] Segundo Talden Farias, “a maior inovação trazida pela nova ordem constitucional foi a inclusão dos entes locais como membros da Federação, que passaram a gozar da devida autonomia [...] com um número significativo de atribuições”. Mas, segundo o autor, o reconhecimento da competência administrativa dos municípios foi trazida pela Lei Complementar 140/2011, que “fixou as normas de cooperação entre os entes federativos nas ações administrativas decorrentes do exercício de competência comum relativas à proteção do meio ambiente”. In Competência Administrativa Ambiental: Fiscalização, Sanções e Licenciamento Ambiental na Lei Complementar 140/2011, pp. 1 e 123. 2020, Rio de Janeiro: Lumen Juris.

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