1. O Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) comemora 180 anos recebendo em seus quadros o Ministro e Professor Rogério Schietti Cruz que, sem exagero, tem sido responsável por uma virtuosa revolução no âmbito do direito processual penal no Brasil.
2. Temos um duplo motivo para festejarmos a data, na medida em que a vigorosa transformação pela qual passa o nosso processo penal tem origem inequívoca na jurisprudência criminal estabelecida pelas 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça (STJ), inspirando quer o Supremo Tribunal Federal (STF), quer os demais juízes e tribunais, e pela própria razão de ser do IAB, há muito consagrada no binômio «defesa dos direitos humanos e da democracia».
3. As personagens da homenagem são movidas por ideais convergentes. Nada mais natural, portanto, que o diálogo acadêmico seja promovido nos mesmos cenários de suas atuações, respeitadas as autonomias individuais e institucionais.
4. O Ministro e Professor Rogério Schietti notabiliza-se por conhecimentos profundos no campo da ciência criminal. De uma região desse amplo continente a organização do evento teve a sensibilidade de extrair o objeto da intervenção do novo membro do IAB: o tema da «injustiça epistêmica», tratado por ele, como relator, em algumas decisões do STJ sobre «reconhecimento de pessoas».
5. A «injustiça epistêmica», que Schietti insere no debate judicial brasileiro de forma contundente e ousada, é a porta de entrada para uma dimensão da qual não se pode mais retornar e que diz respeito com o acentuado déficit de conhecimento criminológico que domina a dogmática do processo penal brasileiro desde sempre, funcionando quase como um corte genético: se é «processo penal» em tese não pode ter fundamento criminológico!
6. Há muitas maneiras de se tentar disfarçar o escanteamento da realidade do sistema criminal, escanteamento denotado pelo seu funcionamento concreto e pelos resultados práticos: genocídio da população indígena e preta, encarceramento em massa alcançando prioritariamente os mesmos grupos.
7. Uma das formas de iludir a realidade consiste em não tratar dela ao se analisar «matérias processuais penais». E até há pouco o «véu de ignorância» era estratégia discursiva comum à doutrina e à jurisprudência.
8. As decisões do STJ sobre reconhecimento de pessoas são um divisor d’águas.
9. A partir delas começam as afinidades teóricas fadadas a desafinar o concerto de vozes tradicionais do processo penal, afinidades de que falarei muito rapidamente.
10. Miranda Fricker atinge o ponto fraco da filosofia analítica anglo-americana ao afirmar, sem meias-palavras, que “[d]e tempos em tempos, os eticistas podem relembrar o estado implodido no qual estava a ética filosófica sob o regime positivista da análise linguística e respirar com alívio ao notar que o sujeito gradualmente se redescobriu.”
11. Acrescenta Fricker, “[a]ssim uma região moribunda da filosofia foi ressuscitada por uma atenção mais próxima à experiência vivida”, com a autora propondo uma forma de fazer epistemologia que contemple «identidade social» e «poder». Ela afirma, com muita razão, que essa atitude epistemológica é um “pré-requisito para revelação de certa dimensão ética à vida epistêmica”.
12. Fricker propõe como ponto de partida da «reflexão crítica sensível» a injustiça (testemunhal, hermenêutica) e não seu oposto, visualizando no exercício do «poder social», desigualmente distribuído, mecanismos de aviltamento das identidades pessoais e coletivas
13. A pergunta que não quer calar é “como o processo penal pode conviver e ainda convive com a experiência cotidiana das práticas sociais que instrumentalizam a injustiça e não toma essa experiência como tema seu, de dogmática jurídico-processual?”.
14. Dois fatos históricos, mediados por duas décadas, podem nos ajudar talvez não tanto no diagnóstico ou na resposta à questão, mas na solução dos problemas gerados por uma justiça criminal sistematicamente injusta.
15. Com efeito, em 09 de janeiro de 2003 foi editada uma lei de texto bastante modesto, cujo potencial revolucionário, no entanto, não fica a dever às decisões do STJ. A Lei nº 10.639/03 tem apenas dois artigos e nessa sua simplicidade das coisas grandes altera dois artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Um deles, que interessa diretamente ao debate, institui a obrigatoriedade de ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no ensino fundamental e ensino médio. Mais precisamente: o conteúdo programático incluirá o estudo da África e dos Africanos.
16. O segundo fato é recente. Em 19 de julho de 2023, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou a primeira versão de nossa Constituição na língua indígena Nheengatu.
17. Na mesma data foi editada a Lei nº 6.303, do Estado do Amazonas, que define 16 línguas indígenas como idiomas cooficiais no Estado, ao lado da língua portuguesa.
18. Calcula-se que a população nativa no Brasil no início do século XVI correspondia a 8 milhões de pessoas. Hoje, estima-se que sejam um milhão e setecentas mil pessoas, metade delas vivendo na Amazônia.
19. A título de curiosidade acerca desse viés expressivo nos estudos processuais penais, convém ressaltar que, de acordo com Pedro Paulo Funari e Francisco Silva Noelli, se o “mundo todo possui hoje um total de 250 grupos linguísticos”, mais de 150 são ameríndios.
20. Não parece razoável ocultar essas sociedades e ignorar suas culturas, em particular porque mesmo o direito de origem estatal modernamente consente coexistir ao lado desses direitos baseados nos costumes.
21. A suposta «superioridade intelectual» de determinadas culturas legitima a hierarquização das contribuições próprias originais de cada grupo social, quer do ponto de vista da definição das práticas jurídico-penais hegemônicas, quer relativamente à importância do estudo de cada uma delas.
22. O passo dado pelo CNJ, ao traduzir a Constituição para a língua indígena Nheengatu, é relevante, sem dúvida, mas não nos exime de percorrer o caminho contrário e buscar conhecer a cultura e as práticas sociais dos nossos viventes povos nativos, incluindo a cultura e prática jurídicas.
23. Não percorrendo esta via, que é de mão dupla, seguiremos implementando um modelo de «injustiça epistêmica» fundado na naturalização de absurdas hierarquias culturais, manifestação explícita de «poder social».
24. Talvez a mais recorrente estratégia de exercício abusivo do poder social consista na invisibilização dos grupos e classes sociais subalternizados e oprimidos.
25. Günther Frankenberg, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Frankfurt, alerta para o fato de que um “conceito central de direito [formalista], entendido como um conjunto de instituições, técnicas e normas pensadas e postas em vigor para garantir e reconhecer direitos individuais de forma racional e neutra” gera, por meio de interpretações etnocêntricas, um mecanismo de “controle cognitivo” de uma cultura jurídica hegemônica sobre as demais.
26. “O formalismo”, sublinha Frankenberg, “produz uma concepção estreita de direito que, em perspectiva comparada, está inspirada pela cultura jurídica nacional e logo se projeta naquilo que em outros contextos sociais e históricos é, parece, ou se pensa que é o direito.”
27. A definição do “mundo jurídico relevante” que desconheça as demais experiências jurídicas impõe “hierarquias autoconfirmatórias” daquilo que pode ser considerado «jurídico» e, portanto, importante para os estudos no âmbito do direito, relegando temas centrais presentes nas diversas culturas jurídicas às prateleiras marginais do não-jurídico ou herético.
28. O processo de invisibilização inclui a negação das histórias e culturas dos grupos sociais e, sem dúvida, essa negação é, igualmente, negação das histórias e culturas jurídicas, em um sufocamento de identidades sociais que reserva aos respectivos grupos os papéis sociais mais degradantes.
29. O professor senegalês M. Amadou ‑ Mahtar M’Bow, Diretor Geral da UNESCO entre 1974-1987, coordenou um extraordinário projeto de redação de História Geral da África, que havia se iniciado em 1970, e do qual participaram 39 pesquisadores, 26 dos quais africanos, que resultou em oito excelentes volumes publicados também no Brasil.
30. M’Bow sublinha que “[a]o escrever a história de grande parte da África, recorria-se somente a fontes externas à África, oferecendo uma visão não do que poderia ser o percurso dos povos africanos, mas daquilo que se pensava que ele deveria ser.”
31. A negação de uma história e cultura autônomas envolve a recusa ao reconhecimento de que os povos são dotados também de uma cultura jurídica. Recusa-se reconhecer essa realidade ignorando práticas jurídicas e as diminuindo à luz de critérios que estabelecem uma espécie de «dia de batismo do direito dos povos», que é quando passam a adotar métodos, critérios e práticas definidas na Europa e mais tarde nos Estados Unidos da América.
32. O rol de argumentos para menosprezar a cultura e história pos povos não Ocidentais, incluindo aí a cultura e história jurídica, costuma contemplar aquele que reserva a essas práticas uma condição de «mera curiosidade arqueológica e antropológica», muitas vezes repetindo-se que as «fontes orais» dessas histórias não são confiáveis.
33. M’Bow, com alguma ironia, relembra que a mesma objeção não sofrem a Ilíada e a Odisséia, muito pelo contrário.
34. Na América, a fronteira temporal é traçada pela chegada dos europeus ao continente, em 1492. Antes da ocupação europeia, hipoteticamente, o que havia era «pré-história»; depois de sua chegada, «história», isso independentemente do fato de que na América se usava a escrita bem antes da chegada dos europeus, entre os maias, incas, nambiquaras e tupis, que “tinham sistemas de registros comparáveis à escrita”
35. Introduzir a temática da injustiça epistêmica no Direito significa, à semelhança da proposta de Fricker relativamente à filosofia, recuperar o papel protagonista dos sujeitos na construção do conhecimento na tentativa cotidiana de superar os preconceitos.
36. Por exemplo, ao tratar dos discursos ocidentais de gênero e sua recepção em várias sociedades africanas, quer na atualidade, quer em longa duração, Oyèronkę́ Oyēwùmí busca demonstrar a insuficiência e inadequação epistemológicas de se lidar com categorias euroderivadas como categorias “universais e generalizantes” para entender e explicar realidades culturais bastante distintas das europeias.
37. Abordando o tema da “invenção das mulheres” a partir da cosmopercepção iorubá, com o objetivo de “construir um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero”, Oyèronkę Oyēwùmí formula uma pergunta-chave em termos epistemológicos que da mesma maneira é válida para os estudos de direito processual penal: “em que bases as categorias conceituais ocidentais podem ser exportadas ou transferidas para outras culturas que possuem uma lógica cultural diferente?”
38. Ressalta a pensadora iorubá a “impossibilidade de supor que uma cultura possa explicar a outra” e informa, por exemplo, que na comunidade iorubá “a natureza da anatomia não definia a posição social de uma pessoa”.
39. “... a ‘fisicalidade’ da masculinidade ou feminilidade não possuía antecedentes sociais [no mundo iorubá] e, portanto, não constituía categorias sociais,” sublinha Oyēwùmí.
40. Semelhante percepção – e crítica – também parece poder ser extraída da análise da intelectual Aura Cumes, da nação Maia Kaqchikel, que com base em estudos desenvolvidos por mulheres Maias da Guatemala, nas últimas três décadas, assinala que conceitos ocidentais sobre patriarcado e gênero não podem ser automaticamente transplantados para sociedades como a Maia, que não partilham a mesma cosmopercepção dos europeus e norte-americanos sobre o papel social do feminino e do masculino.
41. O artigo de Cumes, ademais, agrega o estudo do Popol Wuj, livro datado de 1554-1558, e escrito por descendentes de três linhagens fundadoras do Povo K’iche da Guatemala, que traduz a percepção da noção de “pessoa ou gente” em reconhecimento à histórica “paridade em horizontalidade” feminino-masculino própria dessa civilização.
42. Popol Wuj é um documento importante, ainda, por demonstrar o equívoco de supor que os grupos sociais ameríndios não dispunham de história própria.
43. É um equívoco conceitual grave supor que o direito dos povos originários seja de caráter ahistórico, que ele próprio não tenha se transformado ao longo do tempo e que, no que diz respeito a práticas vigentes de resolução institucional de controvérsias graves, não deva ser estudado, ao contrário, que deva ser ignorado supostamente por não estar em condições de contribuir positivamente em um contexto de diálogo interjurisdicional soberano.
44. A reflexão criminológica, como base para o saber processual penal, também entre nós é objeto de um esforço competente de enfrentamento no plano teórico e em consideração às consequências práticas derivadas do funcionamento do sistema de justiça.
45. Lívia Sant’Anna Vaz e Chiara Ramos, em “A Justiça é uma Mulher Negra”, relembram que “o capítulo IV do Código Criminal de 1830 dedicou-se à disciplina do crime de insurreição – cometido quando da reunião de vinte ou mais escravos para obtenção da liberdade por meio da força (art. 113) – prevendo entre as penas, a pena capital.”
46. Estranho esse «saber jurídico-processual» que não estranha as coisas estranhas!
47. O crime era – e ainda é, em tantas situações – lutar por liberdade e dignidade e o processo criminal é, supostamente, «um método neutro disposto a buscar a verdade».
48. Sueli Carneiro nos fala do “sequestro da razão”, isto é, da prática epistemicida por meio da qual se produz um processo “persistente... da inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais.”
49. Sueli Carneiro nos ensina que o “epistemicídio” integra o “dispositivo de racialidade” que hierarquiza as potências cognitivas dos seres humanos.
50. Percebe-se no apagamento das culturas jurídicas subalternizadas uma espécie de estratégia nina-rodrigueana deslizando sutilmente da criminologia para o processo penal brasileiro, por exemplo, sem que no campo do direito processual penal seja necessário admitir publicamente a escolha.
51. Naturaliza-se o que antes foi uma decisão política imposta pelo processo de colonização, com todas as suas violências físicas e simbólicas, consignando-se, no Brasil, nos manuais de processo penal, uma história legal do processo penal que se inicia com as Ordenações do Reino Português e os Alvarás e Decretos, passa pelo Código de Processo Criminal do Império de 1832, de influência em tese liberal, e deságua no Código de Processo Penal de 1941, que o então Ministro da Justiça e Interior da Ditadura do Estado Novo declarou derivar de seu homólogo fascista italiano, o Código Rocco.
52. É necessário mudar esse cenário.
53. Ao franquear o debate sobre “injustiça epistêmica”, no seio do STJ, no contexto de uma jurisdição tão significativa como é a do tribunal superior, Rogério Schietti proporcionou as condições para uma abertura teórico-prática do saber processual penal que não estanca na questão do «reconhecimento de pessoas».
54. Na verdade, vai muito mais longe. Quiçá, nossos filhos, filhas, netos e netas não tenham do que se envergonhar quando vierem a falar da justiça criminal dos tempos futuros. E a falar de justiça sistêmica, e não de injustiça epistêmica.
Muito obrigado