Sepultar os mortos e cuidar dos vivos e fechar os portos.
(Marques de Pombal)
As fortes chuvas que assolaram o estado do Rio Grande do Sul (RS) nos fins de abril e começo de maio de 2024 causaram danos em vidas humanas, perdas de propriedade, de atividades produtivas e de recursos naturais que são incalculáveis e, certamente, deixarão uma marca profunda na sociedade gaúcha e na sua paisagem. O paradoxo está no fato de que o RS é pioneiro na defesa ambiental no Brasil.
A tradição de defesa do meio ambiente é antiga no RS. O desbravador da luta ambiental “nos pagos” foi Henrique Luís Roesler [1] (1896-1963), um servidor público que exerceu diversas funções na área da agricultura. Ele produziu uma atividade intensa de conscientização da população sobre a proteção da natureza. Foi fundador da União Protetora da Natureza, uma das primeiras associações civis de defesa ecológica brasileiras, em 1º de janeiro de 1955 que após a morte de seu fundador foi extinta.
A Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – AGAPAN[2] foi fundada em 1971, período de forte repressão política por parte da ditadura militar. Na celebração do cinquentenário da associação, o então presidente Francisco Milanez afirmou: “Em 1971 não se sabia o que era Ecologia, até então uma ciência praticamente desconhecida. Colocamos esse tema em pauta e tivemos grandes conquistas”[3].O 1º Presidente da ONG foi o conhecido ecologista José Lutzemberger.
Uma das primeiras lutas ambientais no Rio Grande do Sul se deu, ainda, sob o tacão da ditadura, quando a fábrica de celulose Borregaard se instalou no estado, em 16 de março de 1972. A empresa lançava um odor insuportável e foi alvo de constante pressão por parte da AGAPAN, com destaque para as atuações de Lutzemberger e de Flávio Lewgoy.
É também merecedora de menção a resistência do jovem estudante e membro da AGAPAN, Carlos Alberto Dayrell, que impediu a derrubada de uma Tipuana[4], que ficava em frente da faculdade de Direito da UFRS, subindo em cima da árvore no dia 25 de fevereiro de 1975, ainda durante a ditadura militar. Como se viu, a luta ambientalista no Rio Grande do Sul é forte e tradicional, sendo motivo de orgulho dos gaúchos.
Do ponto de vista institucional, o estado do Rio Grande do Sul foi um dos primeiros a possuir uma agência de controle ambiental, cujas origens se encontram na Coordenadoria do Controle do Equilíbrio Ecológico do Rio Grande do Sul (criada na década de 1970) e do antigo Departamento de Meio Ambiente (DMA), da então Secretaria de Saúde e Meio Ambiente.[5] O atual órgão de controle ambiental do estado do Rio Grande do Sul tem em seu nome uma homenagem a Henrique Luís Roesler.
Entretanto, os exemplos do passado foram se perdendo. Atualmente, o que se vê é uma forte pressão dos mais diversos interesses, no sentido de “flexibilizar” a legislação de proteção ambiental. Houve crítica sobre o novo Código Ambiental por ter sido aprovado em 75 dias pela Assembleia Legislativa sem que a comissão de meio ambiente fosse ouvida.[6] O problema mais grave, no entanto, não se prende às normas propriamente, mas a baixíssima eficácia delas.
Na minha opinião trata-se de um equívoco atribuir às “mudanças climáticas” os graves problemas causados pelas chuvas torrenciais que castigaram e castigam o estado meridional. As mudanças climáticas agravam problemas já existentes. O problema real é fruto de decisões políticas que vêm sendo tomadas há tempos. Aqui é necessário que se reconheça que isto não ocorre só no RS. De norte a sul do País as decisões políticas erradas causaram imensos danos ambientais e às pessoas. Em 2011[7], a região serrana do Rio de Janeiro sofreu com fortes chuvas que acarretaram centenas de dezenas de mortos e desaparecidos além dos prejuízos econômicos. Os exemplos se multiplicam. Advirta-se que, menos de 15% dos municípios brasileiros possuem sistema de alerta para eventos climáticos.[8]
Relativamente ao ano de 2023, a Defesa Civil nacional aponta a existência de 2.797 municípios reconhecidos em situação de emergência ou estado de calamidade. Estima-se em mais de 14 milhões o número de pessoas afetadas.[9] Em 2023, a Prefeitura de Porto Alegre apresentou um Relatório que indicava a presença de 142 áreas de risco na cidade, com mais de 20 mil famílias habitando em tais áreas. [10] A crescente ocupação de áreas de risco é fruto de uma explosiva combinação de leniência administrativa, com dificuldades econômicas das pessoas que ocupam tais áreas com políticas habitacionais inadequadas ou inexistentes.
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A discussão em torno do desflorestamento da Amazônia é da maior importância, todavia, ele gera um efeito colateral negativo que é o “esquecimento” da diminuição de vegetação em outras regiões e biomas do País. O RS tem passado por um severo processo de perda de vegetação natural, com consequências para o clima e para a sociedade.
O MapBiomas, think tank ambiental e banco de dados, afirma que o
Brasil perdeu 9,6 milhões de hectares dessa vegetação herbácea e arbustiva entre 1985 e 2022, segundo um levantamento inédito do MapBiomas sobre a cobertura vegetal não florestal do país – uma vegetação constituída por plantas de porte pequeno e sem estrutura lenhosa (gramíneas e ervas), ou com tronco lenhoso fino (arbustos). Esse tipo de vegetação está presente em todos os biomas brasileiros sob diferentes formas: formações campestres, campos alagados e áreas pantanosas e afloramentos rochosos. Juntas, elas ocupam 50,6 milhões de hectares, ou 1,4 vezes mais do que o território da Alemanha, e assim como as florestas, estão sendo rapidamente destruídas.[11]
O levantamento do MapBiomas indica que o Pampa é um dos ecossistemas que perdeu mais cobertura vegetal, se considerado o seu tamanho e a quantidade de redução de vegetação nativa.
Em termos absolutos, o Cerrado lidera o desmatamento de vegetação herbácea e arbustiva, com 2,9 milhões de hectares suprimidos. Já o Pampa, um bioma bem menor, teve um desmatamento bem próximo em números absolutos: foram 2,85 milhões de hectares entre 1985 e 2022. Mas em termos proporcionais, isso representou a impressionante cifra de 30% de perda da vegetação em relação ao que havia em 1985.
O corte silencioso e, de certa forma, incentivado da extinção da cobertura vegetal no RS, lamentavelmente, não se limita apenas ao Pampa.
As formações campestres e os campos alagados e áreas pantanosas são os tipos de vegetação herbácea e arbustiva mais abundantes no Brasil, respondendo por 95% do total. Dois terços disso (66%) são de formação campestre, que ocupa 33,5 milhões de hectares. Quase a metade desse total (49%) está na Amazônia (26%) e no Cerrado (23%), com 8,8 e 7,8 milhões de hectares, respectivamente. Pantanal (6,2 milhões de hectares) e Pampa (6 milhões de hectares) respondem por 18% cada um. Desde 1985, o Brasil perdeu 6,7 milhões de hectares desse tipo de cobertura. Quarenta e três por cento desse total (2,9 milhões de hectares) foram suprimidos no Pampa. “No caso da Mata Atlântica, a perda de 559 mil hectares, ou 24% de vegetação campestre, ocorreu principalmente nos campos de altitude na divisa de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que foram convertidos para áreas agrícolas e silvicultura: 335 mil hectares e 171 mil hectares, respectivamente”, complementa Marcos Rosa, coordenador técnico do MapBiomas.
A Mata Atlântica no Rio Grande do Sul, atualmente, ocupa uma pequena parcela de sua área original, não ultrapassando os 7%[12].
A região sudoeste do estado passa por um importante processo de arenização.
Os trabalhos iniciais relativos a interpretação do processo de arenização no Rio Grande do Sul apresentam como explicação para a origem dos areais, a busca de maior rentabilidade agrícola, partir do arrendamento de terras e a introdução da agricultura mecanizada, particularmente na lavoura de soja.[13]
Não resta dúvida que as condições da flora do estado estão muito deterioradas.
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A Agência Nacional de Águas, e Saneamento Básico em 2022, publicou o Relatório de Segurança de Barragens 2022 que abrange o desenvolvimento das ações dos órgãos responsáveis pela implementação da Política Nacional de Segurança de Barragens no período 01/01/2022 a 31/12/2022.[14] O relatório traz uma lista de barragens que causam preocupação:
Visando priorizar ações e captar a atenção do alto escalão da Administração Pública nas diversas esferas de governo, a ANA solicitou aos OFSBs uma lista de barragens que, na visão deles, mais preocupam, isto é, barragens que possuem algum comprometimento quanto à segurança e que, em caso de acidente, têm potencial de perda de vidas humanas. Essas estruturas devem ser levadas em consideração quando da aplicação de recursos e implementação de políticas públicas e, principalmente, no estabelecimento de critérios de prioridade para atuação das OFSBs (p. 46).
Em relação às barragens, o Rio Grande do Sul ocupa a 4ª colocação entre os estados cujas barragens estão em situação mais preocupante, ostentando 13 barragens em tal condição. A título de exemplo, veja-se o que o Relatório traz sobre uma barragem em Porto Alegre:
No RIO GRANDE DO SUL, o DRHS/SEMA/RS identificou barragens com potencial de perdas de vidas humanas, com anomalias que comprometam a estabilidade do maciço, ausência de documentações ou sem manutenção e monitoramento. Departamento Municipal de Água e Esgotos, código SNISB 23889, localizada em Porto Alegre/RS, do empreendedor Departamento Municipal de Água e Esgotos, preocupa o DRHS/SEMA/RS por estar em desuso, sem manutenção e com diversas anomalias que comprometem a estabilidade e segurança do maciço. A área a jusante da barragem é intensamente povoada. E a barragem não possui documentação relacionada à outorga de uso da água e PNSB. Cabe ao Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) o desenvolvi- mento das ações para garantir a segurança da barragem. (p. 61)
Aqui se pode perceber uma importante degradação da infraestrutura.
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O combate aos efeitos das chuvas e a adaptação que será necessária doravante, ficam muito prejudicadas em função da elevada dívida que o RS tem para com a Uniao, conforme se pode ver do gráfico abaixo:
As dificuldades enormes que o Estado do Rio Grande do Sul enfrenta hoje, podem se repetir amanhã em outros estados da federação. É importante aprender com as lições que nos estão sendo dadas. É necessário que a sociedade brasileira “suba na árvore” e leve a sério as questões ambientais e que defenda uma legislação forte e que, principalmente, seja implementada, respeitada e aplicada.
[1] Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Henrique_Lu%C3%ADs_Roessler > acesso em 07/05/2024
[2] Acesso em < https://www.agapan.org.br/ > acesso em 07/05/2024
[3] Disponível em < https://www.brasildefators.com.br/2021/04/26/agapan-primeira-organizacao-ambientalista-do-brasil-completa-50-anos-de-lutas > acesso em 07/05/2024
[4] Árvore com copa ampla e densa, caule lenhoso frágil e raízes agressivas, seu tronco apresenta uma casca cinza escura, é rugosa e fissurada. Folhas grandes, opostas, imparipinadas, compostas por folíolos oblongos e verdes. Flores alaranjadas com uma pequena mancha marrom na base. Seu cultivo deve ser feito em pleno sol, solo fértil com matéria orgânica e com regas regulares no primeiro ano de plantio. Disponível em < https://sites.usp.br/jardimdabotanicausprp/tipuana-tipuana-tipu/ > acesso em 07/05/2024
[5] Disponível em < https://www.fepam.rs.gov.br/quem-somos > acesso em 07/05/2024
[6] Disponível em < https://oeco.org.br/reportagens/novo-codigo-ambiental-do-rs-e-aprovado-sem-passar-pela-comissao-de-meio-ambiente/ > acesso em 08/05/2024
[7] Disponível em < https://www.cnnbrasil.com.br/noticias/em-2011-chuvas-que-atingiram-regiao-serrana-do-rj-deixaram-quase-mil-mortos/ > acesso em 08/05/2024
[8] Disponível em < https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/09/30/menos-de-15percent-dos-municipios-do-pais-tem-sistema-de-alerta-de-desastres-climaticos.ghtml > acesso em 08/05/2024
[9] Disponível em < https://www.camara.leg.br/noticias/1025455-defesa-civil-aponta-14-5-milhoes-de-afetados-e
[10] Disponível em < https://prefeitura.poa.br/demhab/noticias/habitacao-novo-relatorio-aponta-142-areas-de-risco-na-capital > acesso em 08/05/2024
[11] Disponível em < https://brasil.mapbiomas.org/2023/11/24/brasil-perdeu-16-de-sua-vegetacao-nao-florestal-nos-ultimos-38-anos/ > acesso em 08/05/2024
[12] Disponível em < https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2022/10/11/desmatamento-da-mata-atlantica-no-rs-aumenta-e-area-preservada-reduz.ghtml > acesso em 08/05/2024
[13] Suertegaray, Dirce Maria Antunes et al. Projeto Arenização no Rio Grande do Sul, Brasil: gênese, dinâmica e Espacialização. Disponível em < http://marte.sid.inpe.br/col/dpi.inpe.br/lise/2001/09.14.12.00/doc/0349.356.234.pdf > acesso em 08/05/2024
[14] Disponível em < https://www.snisb.gov.br/portal-snisb/documentos-e-capacitacoes?tipo=documento&id=121 > acesso em 07/05/2024