No debate que antecedeu a aprovação do parecer pelo plenário, o presidente da Comissão de Direito Penal, Marcio Barandier, autor da indicação para a elaboração do documento, afirmou: “O PL é o mais perigosamente inconstitucional e juridicamente absurdo que me recordo de ter lido nos últimos tempos”. O membro da comissão João Carlos Castellar disse que “não há justificativa para uma legislação deste naipe no Brasil, onde terrorismo é o praticado pelos órgãos de segurança pública”. Também membro da comissão, Kátia Tavares falou que “a aprovação do PL provocaria a ampliação do estado de exceção a que está submetida a população pobre”.
De autoria do deputado federal Major Vitor Hugo (PL/GO), o PL visa a regulamentar as ações estatais destinadas a prevenir e reprimir atos terroristas, por meio da ampliação da atuação repressiva do Estado e da subordinação direta das forças de repressão ao presidente da República. O texto é uma versão modificada do PL 5.825/16 protocolado pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, em 2016. Com o fim da última legislatura, em 2018, o PL 5.825/16 foi arquivado, conforme prevê o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. “O Brasil não tem um histórico de ações terroristas que justifique a elaboração de legislação que regulamente ações contraterroristas”, afirmou June Cirino dos Santos.
A relatora, que contou com a colaboração do criminalista Ricardo Pieri Nunes, também membro da Comissão de Direito Penal, na elaboração do parecer, criticou duramente o trecho do projeto que, segundo ela, ameaça o direito constitucional à liberdade de expressão e manifestação. De acordo com a relatora, a ameaça se configura quando o texto do PL autoriza que as forças de prevenção e repressão atuem contra “atos que, embora não tipificados como crime de terrorismo, sejam ofensivos à vida humana ou efetivamente destrutivos de alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave do Estado”. Para a criminalista, a previsão legislativa “dá margem à repressão às manifestações políticas e ações sociais garantidas a todos os cidadãos pela Constituição da República e que podem ser entendidas como ações terroristas, ao sabor dos interesses políticos das autoridades responsáveis, particularmente do chefe do Poder Executivo”.
Lei inútil – June Cirino dos Santos comentou que a Lei 13.260/2016, que tipificou as ações terroristas e foi promulgada na esteira das manifestações de junho de 2013, “se provou infrutífera do ponto de vista da criminalização”. De acordo com ela, “a aplicação prática da lei tem pouquíssima incidência, em razão da histórica inocorrência de ataques terroristas em solo brasileiro”. Ainda segundo a relatora, “por consequência lógica, se não há preocupação político-criminal com ações terroristas no Brasil, torna-se irrelevante, senão mesmo inútil, a regulamentação normativa de ações contraterroristas pretendida no projeto de lei”. A advogada informou que o texto original do PL – alterado em parte pelo substitutivo aprovado pela comissão especial que analisa a proposta na Câmara – considerava crime, inclusive, a desobediência de qualquer cidadão, civil ou militar, a ordem advinda de comandante ou chefe de unidade estratégica contraterrorista.
June Cirino dos Santos opinou que o projeto também viola o princípio da taxatividade, que proíbe a criação de leis penais indefinidas. “É um princípio fundamental para a proteção do cidadão contra o arbítrio do Estado, porque o protege de interpretações idiossincráticas que favoreçam a prevalência do arbítrio estatal sobre suas condutas”, explicou. A criminalista disse, ainda, que o PL afronta também o critério jurídico da extraterritorialidade, ao prever que a atuação preventiva e repressiva contraterrorista do Estado brasileiro poderá ocorrer fora do território nacional. “Isso não apenas cria novas hipóteses de extraterritorialidade no ordenamento jurídico brasileiro, como tem potencial para insuflar crises diplomáticas de grave repercussão”, afirmou.
Outro ponto criticado no parecer é o fato de que o PL 1.595/2019 retoma um debate que já havia sido encerrado pelo Congresso Nacional, antes da promulgação da Lei 13.964/2019, popularmente conhecida como pacote anticrime. Na ocasião, a discussão ocorreu sobre a proposta do ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que inseria no Código Penal as hipóteses de exclusão da ilicitude, ou seja, as situações em que poderia haver exclusão ou redução da pena para o agente do Estado quando, agindo em legítima defesa, praticasse excesso doloso ou culposo desculpável, ao agir movido “por medo, surpresa ou violenta emoção”. Para June Cirino dos Santos, “a proposta é uma flagrante corrupção da dogmática penal, com fim exclusivo de proteger agentes do Estado em ações contraterroristas, cujas condutas são colocadas fora de qualquer possibilidade de responsabilização pelos excessos cometidos contra os cidadãos”.